Eu tava suada, de quatro no campo de morango, o braço coçando porque tinha encostado em hera venenosa num calor de 36 graus quando caiu a ficha.
Que mico.
Por que eu tô rastejando por morangos que poderia pegar direto da prateleira refrigerada do supermercado, na bandeja, colhidos, selecionados e higienizados?
Por quê?
Foi assim que o conceito de Pick Your Own foi pra minha lista mental de coisas que todo mundo finge (ou acha) que gosta mas que são detestáveis. Tá lá junto com: dormir na rede, chocolate com mais de 70% de cacau e véspera de Ano Novo.
Rapidamente:
Dormir na rede. É desconfortável. Ah, mas é porque você deita errado, tem que ser na diagonal. Faz mais de 40 anos que tento encontrar essa diagonal mágica que só os iluminados da rede conhecem.
Chocolate com mais de 70%. Tem gosto de lama com tanino.
Véspera de Ano Novo. O dia que humildemente, ano a ano, demonstra pra todo mundo que expectativa é uma merda.
Pois muito que bem (como diria minha amiga Natália): como fui parar suada de quatro no campo de morango sob o sol do verão?
Aqui onde moro a agricultura CSA é bem comum. Funciona assim: a comunidade compra "parcelas" da produção de uma fazenda. Chama Farm Share. Você se compromete com aquela fazenda por um ano. E toda semana vai lá pegar sua share. É como se fosse uma cesta de orgânicos, com a diferença que a relação é direta com a fazenda e você vai lá pegar.
Neste ano, finalmente comprei minha share. Por 3 motivos:
Mais variedade de hortaliças na mesa.
Adoro vir pra casa com coisas que nunca comi ou cozinhei, pesquisar como usa e sair experimentando.
Um dos meus filhos tá chatinho pra comer. E se ele participa do processo da comida, se aventura mais.
Detalhe importante: a fazenda é a três minutos da minha casa.
Então aos sábados, acordo a prole e vamos buscar nossos veges. A fazenda é um barato. Tem o galpão com a colheita da semana e outros produtos à venda (maple syrup, queijo, picolé). Tem uma biblioteca, um parquinho, às vezes tem uma turma tocando folk, às vezes tem bufê de comida de graça pra todo mundo. Tem sempre um projeto de arte coletiva rolando. Programão.
E uma das atrações é o Pick Your Own. Algumas hortaliças são escolhidas (e não colhidas) para você mesmo ir lá no campo pegar. Na primeira semana, morangos.
Expectativa:
Ah, que divertido! As crianças vão amar!
A região aqui é superpreservada. O campo de morango fica pra lá de uma floresta. Então você pega a caixa com a medida que pode colher e faz uma trilha pela floresta pra chegar no campo. Tudo muito lindo, tudo muito natural.
Aí chega lá são fileiras e fileiras de morango, todos bem vermelhos, maravilhosos.
- Vamos meninos, colhendo morangos, sim? Pode comer um ou outro, mas sem avacalhar.
Quarenta minutos depois, a caixa não tá nem na metade, os moleque, mega frescos, escolhendo só morangos ultraperfeitos e, pra piorar, tirando da caixa morangos já colhidos porque "não estão bons na verdade".
Levou uma vida pra encher a caixa de morango.
Respirei fundo. Primeira vez, né? Em casa, lavei os morangos, comemos e estavam tão bons que relevei.
No sábado seguinte, insisti. Ai, sabe? Strawberry Fields Forever. Tudo muito lindo, tudo muito natural. Colher fruta no pé, infância de verdade, livre de telas, tudo orgânico, viva a natureza, viva a agricultura.
No sábado seguinte, porém, tinha mais morango. Cada share tinha direito ao dobro da quantidade. Demorou uma vida pra encher uma caixa. Agora eram duas.
E foi assim que me vi praguejando, de gatinhas, suada e toda empelotada de alergia.
Verdade que atravessa
Levo muito a sério os momentos da vida em que a verdade vem e atravessa tudo. É algo tão sério e intenso, que a gente inventa até eufemismo. "Caiu a ficha". Caiu a ficha? Amor, o que caiu foi um raio – no meio da sua cabeça.
Pra mim, parece cena de fim de batalha medieval ou antiga. Meu corpo pendurado numa lança, agonizante. Olho em volta e consigo ver fantasias, expectativas, máscaras, tudo despedaçado, morto, apodrecendo.
Colher morangos é um trabalho. Um trabalho pelo qual pessoas que ficam enfiando a mão debaixo das folhas esbarrando em heras venenosas são pagas (provavelmente menos do que deveriam).
Cada ramo de morango tem um monte de fruta: uma verde, uma podre, outra meio comida. Você tem que olhar uma a uma pra achar as boas. Se um milímetro do morango encostou no chão, pronto. Vai ter um buraco que um bicho fez pra comer a polpa macia, doce e calorenta.
Ou seja, depois de trabalhar a semana inteira, acordando cedo pra caramba porque tem um bebê em casa, eu pulei da cama no sábado pra ir, voluntariamente AND pagando do meu bolso, fazer um trabalho pelo qual deveria ser paga. E, pior, esperando que meus filhos embarcassem na loucura e achassem graça. Viva a mamãe linda que quer mostrar pra gente da onde vem o morango!
Que. mico.
Atravessada pela verdade, levantei pra calcular o status da colheita. Tinha enchido uma caixa e um pouquinho da segunda. Estraçalhados no campo: a fantasia de camponesa, a máscara de mãe perfeita e o radinho mental tocando Beatles. Só havia uma coisa a fazer: catar os cavacos e bater em retirada.
Declarei a colheita encerrada, os moleques vibraram e voltamos pra sede da fazenda.
No caminho, agora que eu não estava mais cega, pude ver que TODAS (juro) as famílias com crianças seguiam o mesmo script.
A mãe, de quatro no campo, enchendo a caixinha, falou, irritada pra filha:
- Vai, ajuda aí. Ou não vai dar tempo de ir pro aniversário do fulaninho.
O pai com uma criança de uns 3 anos dizia:
- Mas pega o morango, isso. Agora põe na caixa, good job! A gente tem que encher essas duas caixas antes de ficar queimados de sol.
Só vi uma pessoa que emanava prazer. Era uma mulher muito equipada, com luvas, manga comprida, calças, botas, chapéu, totalmente enfiada embaixo das folhas de pé de morango. A caixa dela só tinha morango lindo. Era uma parábola sobre foco. Não cheguei a invejar. Prefiro focar em ler o jornal de domingo no sofá com o ar condicionado ligado (tá calor pra caramba).
Chegamos de volta na sede, os moleques sentaram na sombra e eu fui comprar picolé: 3, de morango. Morango colhido e transformado em picolé por outras pessoas, que espero que tenham sido pagas pra isso.
Enquanto esperava pra pagar o picolé, brisei. A verdade, quando se revela, não tem como desver. Ela se impõe. Mas conversando com a minha amiga Natália, ela me convenceu de que é uma escolha. Você pode aceitar o que viu e recalcular tudo. Ou pode ignorar a revelação e insistir. A prova disso é a véspera de Ano Novo. Todo ano, milhares de pessoas insistem. Pegam trânsito, pagam caro e vão pra um lugar em que pode chover demais e faltar água – ao mesmo tempo. Fica todo mundo esperando o momento da virada e quando ele chega, a verdade é que não é nada demais (e o espumante tá quente). No dia seguinte, tem caco de vidro escondido na areia, esperando pra cortar seu pé. E no ano seguinte, assim que acaba agosto começa tudo de novo, fulano alugou uma casa na praia, vamo, vai ser irado... Todo ano.
Apertei os picolés no antebraço pra refrescar o inchaço e decidi. Próximo sábado, não interessa. A cota pode ser cinco caixas de morango, não vou nem chegar perto do campo.
PS. Na semana seguinte o PYO era de manjericão e ervilha. O manjericão, na estufa do lado da sede, era só cortar com a tesoura. A ervilha é planta alta, que fica estacada. Em cinco minutos enchemos nossas caixinhas e sentamos pra ouvir folk e comer homus com salada de lentilha do bufê do dia.
Grandes acontecimentos
Nesses meses em que não apareci aqui duas coisas muito legais aconteceram. Nasceu meu terceiro filho, o Fiord. E essa newsletter chegou a mil assinantes. Que loucura! De verdade que eu fico muito feliz com cada pessoa que lê. Escrever é muito legal, eu me divirto muito. Mas é muito mais legal se alguém lê. Então, de vdd, obrigada!
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Absolutamente a melhor newsletter de todas <3 Pena que não é toda semana.
Feliz pela chegada do seu filho! E mais feliz ainda pela sua news! A recebi, me enfiei no trabalho, esqueci e sempre voltava no e-mail na tentativa de ler por completo. Hoje consegui e só quero dizer que SIM! Meu Deus todo ano novo é a mesma coisa hahaha. Compartilhei por anos da ideia de tentar mais uma vez, mas ano passado fiz algo diferente e foi ótimo! Senti zero saudades da praia, da falta de água e da muvuca! Um beijo!