Todo mundo tem umas histórias de infância. Eu, pessoalmente, duvido de quase todas. Não confio muito em memória. Um dos meus livros favoritos é A noite da arma, do ícone David Carr. Pra escrever o livro, que é sobre a vida dele, ele fez 60 entrevistas, gravadas em vídeo. Falou com pessoas que talvez não quisesse mais ver. Ou que talvez não quisessem mais falar com ele. Por quê? Porque não confiava na memória dele – e também porque é um grande repórter. Se o Carr não confiava, eu também não confio.
Bom, tudo isso pra agora mandar um grande MAS.
Mas tem algumas poucas cenas da infância que tenho gravadas na cabeça com muita precisão, tipo clipe mesmo. E nessas fico bem à vontade de confiar.
Esta é uma delas:
Eu tinha entre 4 e 10 anos (a cena se passa na cozinha do apartamento em que morei nesse período). Na geladeira, tinha uma tigela com um restinho de arroz doce. Pedi pra comer. Minha mãe pegou a cumbuca, botou o arroz doce, salpicou canela e me deu.
Comecei a comer, tava estranho.
- Mãe, tá ardido. É a canela. Essa canela tá ardida.
Ela não deu bola.
- Como assim ardido? É canela, come aí.
Insisti.
- Mas tá ardido, parece pimenta!
Ela bufou, abriu o armário, pegou o saquinho Kitano fechado com pregador de roupa e, apontando, começou a ler:
- Olha aqui, Heloisa: ca-ne... pá-pri-ca pi-can-te.
Ela pediu desculpa, jogou fora o arroz doce. E como não tinha mais, lanche encerrado.
Adoro essa história.
Ela poderia ter sido escrita por um roteirista. A canela e a páprica são avermelhadas, os saquinhos eram todos iguais. Adoro especialmente a parte da leitura, sílaba a sílaba, que foi mudando de ca-né para pá-pri-ca-pi-can-te.
Mas o melhor foi a mudança na entonação/expressão facial. No começo o tom era "saco, olha aqui", a leitura rápida e convicta. No meio virou um tom de "hãaaan? qqéisso?", a leitura perdeu ritmo, ficou errante. No fim o tom era "minhanossa-que-mancs", e as vogais estendidas e com interrogações, caaaan?-teeee?.
Todas essas nuances no decorrer de oito sílabas.
Guardei duas lições dessa cena. 1. Minha mãe não levou nem um segundo pra pedir desculpas. Foi imediato. 2. Ela também não levou um segundo para rir de si mesma. Ao contrário do que se possa imaginar, a cena não terminou em frustração, choro ou tristeza (embora eu tenha ficado sem o arroz doce). Ela terminou com gargalhadas e a certeza de que ia ficar pra história.
Pois bem.
Corta pro presente.
Já aconteceu de eu colocar sal no café com leite. Uma vez usei curry no lugar de garam masala. Mas a canela, por conta dessa memória, sempre tem minha atenção total. Inclusive ela fica bem longe da páprica. E em potes bem diferentes. Aliás, nunca comprei páprica picante. Compro a doce e a defumada e uso pimenta-do-reino moída na hora.
Anteontem, agora que esfriou, o Tomé pediu mingau de café da manhã (1 xícara de chá de leite, uma colher de sopa de açúcar, uma colher de sopa de amido. Vai tudo pra panela, esquenta, mexe, ferveu, engrossou, pronto).
Ele come o mingau com um pedacinho de manteiga, canela e raspinha de casca de laranja. Mas ele tava com preguiça de finalizar o mings (nossa gíria pra mingau) e pediu pra eu montar. Escolhi um prato novo, que comprei no brechó, coloquei a manteiga, raspei a laranja.
E o Tomé ali, sentado na frente do prato.
Pois bem, comecei a colocar a canela.
Bateu um cecê.
Olhei pro meu filho. Ele tem dez anos. Alguns amigos dele já entraram na fase da suvaqueira, mas ele ainda é cheirosinho, nem chulé tem. Cafunguei meu suvaco, nada. Foi então que veio: caralho, é cominho.
Eu tava, com todo o cuidado do mundo, peneirinha de metal pra não deixar cair aquele monte de pó num lugar só, salpicando cominho no mingau do Tomé.
O que veio imediatamente? As lições que aprendi. De cara pedi desculpa e comecei a rir de mim mesma. Ele não precisou de muito convite pra se juntar às gargalhadas.
Quando olhei pro fogão, me dei conta de que, por acaso, nesse dia, como era a primeira manhã mais fria da estação, eu dobrei a receita, prevendo que mais alguém pudesse querer mingau. Então foi só pegar outro prato e começar de novo.
Ele não ficou sem mingau, colocou canela, a gente riu bastante e o dia começou.
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Essa crônica foi um abraço!
Imagino que canela aí seja canela. Aqui, a quase totalidade, é cássia. Parece muito mas canela é mais pungente, e levemente mais picante. Escreva, escreva! É uma alegria ler vc.