Se essa newsletter fosse um espaço, seria a calçada perto do portão. Aquele lugar em que antes de dar tchau e fechar a porta, você conta uma historinha boba e irresistível.
Papinho de portão é anexar, na despedida, esse .exe que faz a pessoa passar dias pensando no assunto. É das minhas coisas favoritas, essas conversas que parecem abobrinha, mas ficam reverberando.
Importante distinguir papinho de portão do assunto-da-maçaneta – um termo que vem da terapia/medicina pra definir aquela bomba que o paciente solta quando já tá com a mão na porta, pronto pra sumir. O momento pode fazer os dois parecidos, mas eles são opostos na motivação.
O papinho de portão é um pedaço de mim que entrego pra um amigo porque não quero dar tchau, quero continuar conversando pra sempre, mas preciso cuidar da vida. O assunto-da-maçaneta é uma coisa que você quer que a pessoa saiba, mas de preferência esqueça que foi você que falou.
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Pois aconteceu de eu ter um papinho de portão há poucos dias. Sabe, tá difícil manter a leveza sendo uma imigrante com filhos imigrantes no país do Trump.
Tava falando disso com um amigo bem íntimo, antigo, aquela amizade que tem o tamanho de um continente, a profundidade de uma fossa abissal e a abundância de camadas de um croissant perfeito.
Ele mandou um papinho de portão em sua melhor forma. Olha só:
Por excesso de esporte, ele machucou a unha do dedão. Na noite antes da posse do Trump, a unha tava naquele cai-não-cai, ele tirou a meia e viu que ela tava presa por um fio.
A unha pendurada foi dando agonia, ele foi ficando tomado (ao mesmo tempo percebendo a infantilidade da coisa, estamos falando de um homem brilhante).
“Passei o dia seguinte – o dia da posse – no maior mal estar. Chegou uma hora que eu não sabia mais se era o Trump ou a unha. A sensação era a mesma.”
Aí ele obviamente fez todas as ressalvas, que sabe que são dimensões muito diferentes, mas o mal-estar. “O mal-estar físico e constante.”
Pra terminar:
“Quanto à unha, no dia seguinte fui no podólogo, ele tirou a unha, não tá doendo e já tem outra crescendo.”
Quantos assuntos, que riqueza. Minha cabeça foi indo:
Primeira parada, essa ilustração que o Edel Rodriguez fez pra Time Magazine.
Agora, pra mim, essa é a impressão digital do dedão do pé do meu amigo. De um lado o Trump, do outro lado, a unha presa por um fio.
Segunda parada: “saúde é o silêncio dos órgãos”. Dor no pescoço, unha encravada, furúnculo. Hemorróida, espinha, picada de mosquito. Essas coisas desestabilizam porque aquela parte do seu corpo fica fazendo ruído. Saúde é nem lembrar que você tem unha.
Terceira parada: “vamos aproveitar o tédio”. Na mesma linha que bom é não pensar da unha, quando começou o governo Biden um comentarista político que eu gosto disse algo como “que semana maravilhosa, todas as notícias são entendiantes, não tem nada explosivo para comentar, vamos aproveitar o tédio”.
O que eu posso dizer? Vou tentar achar a graça das coisas pequenas pra continuar escrevendo, sinto falta e gosto de achar que é recíproco. Fico torcendo pra essa grande unha cair e outra nova crescer no lugar. Acho que todo mundo vai gostar de saber que neste mês é aniversário da Leonor e ela me convidou pra ir tomar mimosas numa segunda-feira na casa dela pra comemorar (é feriado, mas ainda assim segunda-feira).
PS. O Capelas, da ótima Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais, adicionou uma quarta parada:
“Parafraseando a grande Laerte, ‘a grande unha, um dia ela vai cair’.”
3.331 caracteres com espaço
Parafraseando a grande Laerte, "a grande unha, um dia ela vai cair".
quando eu queria ser sua amiga e voce não me dava pelota (cof cof cof) eu ficava tentando puxar na minha cabeça um papinho de portão para ter com você. no caso, o portão era a baia do estadão. e eu tinha aprendido o conceito lendo o caracs <3
agora to obcecada com o conceito de saúde ser silêncio do corpo.
eis aqui o nosso atual papinho de portão