Refeição madrilenha acaba quando termina

Cheia de travessas e cercada de pessoas que não dão sinal de que vão arredar suas garupas da cadeira. Bem-vindo à mesa espanhola, na qual nunca falta comida tampouco papo. O tempo é elástico, gasta-se dele quanto for. Para provar disso tudo, vamos ao cozido.
Prepare-se para enfrentar sérias dificuldades ao contar as tigelas, pois isso vai longe. Antes de mais nada, vem a sopa de grão-de-bico e fidelinho, no caldo em que foram cozidos os itens do prato principal. A sopa é vigorosa. Mas não exagere: é só o aquecimento.
Depois de se fartar da sopa, vêm as rodadas de travessas. Primeiro, os vegetais: grão-de-bico, repolho, cenoura e batata. Esqueça esse papo de cenoura em rodelas. Ela vem logo inteira, cabeleira de folhas inclusive, e vai assim, incólume, para o prato. Em seguida vêm o frango, a carne, o porco, a costela, o presunto, o mocotó, o toucinho e a linguiça. Um de cada um para cada conviva.
Agora, às contas: no seu prato tem uma colher de grão-de-bico, uma cenoura, uma batata inteira, uma colher de repolho, uma coxa de frango, um pedaço de carne, uma costela, uma cabeça de presunto, um pedaço de osso, um quadrado de toucinho e uma linguiça. Dimensione o prato. Errou. É maior.
Diante do osso recheado com mocotó, poucas pessoas se mostram dispostas a sugar a gelatina intra-óssea de qualquer bicho. Mas eles explicam: "Pegue a gelatina com uma faca e passe-a no pão". Outro item que centraliza olhares é a cabeça de presunto. Trata-se da parte mais larga da peça, oposta ao osso, cozida. As faixas de gordura se separam da carne, que fica fibrosa e saborosa.
Refestelados e estatelados em suas cadeiras, os comensais, nesse momento, acreditam ter quebrado o recorde de quantidade de alimento consumida de uma só vez. Mas em cada prato, por guloso que seja o seu dono, há sobras.
Versão reeditada de texto meu publicado no caderno de Turismo da Folha em 12 de janeiro de 2004. O título é o mesmo que saiu lá.