Tava com um amigo numa praça de alimentação respirando o ar pesado de fritura. Ele contou que tem um amigo médico que, quando vai contratar alguém na equipe dele, pergunta:
- Se você fosse um tecido, qual seria?
Continuou contando que um dos entrevistados respondeu na lata:
- Polipropileno.
A gente riu muito. A escolha de um tecido feito de plástico e que tem como principal característica afastar o suór do corpo deixa muito claro que essa pessoa quer distância da natureza. Talvez não devesse exercer a medicina?
Mas a gente logo avançou pra o que interessa. Qual tecido sou?
- Só existem duas respostas possíveis: seda ou linho, joguei.
Ele mal esperou eu terminar pra emendar:
- Lã! Não que eu seja, mas precisa pelo menos acrescentar lã.
Antes de seguir, uma breve pausa para apreciar como neste momento eu e meu amigo estávamos declarando nossa natureza – e o quanto estamos conectados a ela. Eu, que cresci no calor, só penso em linho e seda. Já ele, criado no meio-oeste americano, obviamente pensa em lã.
Perguntas aleatórias conseguem enganar de leve o racional e deixar outras coisas aparecerem. A gente tava ali, dois cabeção num fast food fedorento, falando de fibras naturais e descrevendo nossa pelagem animal – verões tropicais e invernos polares.
O convite é irresistível. Qual tecido você é?
Esse amigo meu é jeans. Versátil e resistente, é pau pra toda obra sem ser banal. Os dois são totalmente americanos. Ele é tão 100% jeans que ficou feliz de ser jeans.
Eu queria ser linho, mas pode ser que seja morim. Primeiro vou defender o linho:
Quero acreditar que sou adaptável, como o linho que refresca no calor e protege no frio. Também gosto de me ver transparente, direta, como o linho em que a trama é visível, a textura da fibra também, é só olhar bem. A gente não esconde nada. Por fim, a elegância rústica do linho amassado é 100% meu ideal de estilo.
Mas talvez eu esteja mais pra morim, aquele tecido-tela que a gente usa pra fazer protótipo (ou queijo). É um tecido básico de algodão, com todas as características mencionadas acima – menos a elegância rústica. Tipo menos, menos...
Dei uma sumida, aconteceram umas coisas legais – a principal delas foi começar a trabalhar aqui, num emprego muito legal. Viva! (Aliás, chegou um monte de gente nova por aqui! Vai chegando, pessú, fica à vontade.)
Outra coisa legal que aconteceu foi este texto da Gabriele Estevans. Ela fala sobre escrever com o corpo x com a cabeça, a sério x brincando. O texto dela ficou pulando aqui dentro de um lado pro outro.
Quando eu era criança, tinha um vizinho peste que tinha uma bereta de brinquedo e uma coleção de latas de cerveja (bem anos 1980). A gente gostava de fechar a porta do quarto e atirar a bereta. A bala, que era uma bolinha, ricocheteava pra todo lado, parede, latinhas, na gente… Até acertar um travesseiro ou o edredom e parar. A gente ficava no meio do quarto, igual duas tartarugas tentando se proteger e morrendo de rir. Sempre que uma ideia não para quieta na minha cabeça, volto pro quarto do vizinho, a bereta e a coleção de latas.
Pessoalmente, escrevo 100% por diversão, é minha brincadeira. (E sempre fico surpresa de ter gente que lê. Vou dar uma de linho e citar Machado. O que não admira, nem provavelmente consternará é se este outro livro não tiver os cem leitores de Stendhal, nem cinqüenta, nem vinte, e quando muito, dez, Dez? Talvez cinco. Sempre penso nessa frase de Memórias Póstumas. Cinco já me deixariam boba de feliz.)
O que mais me intrigou na conversa da Estevens foi a coisa do corpo. Esses dias trombei aqui com a expressão “brains on sticks”. Cérebros num palito. Onde eu moro tem um monte desses – gente que parece que brigou feio com o corpo, tipo o cara que quer ser polipropileno. Rompimento total. Eles até malham, todo mundo corre, não é sedentarismo. É falta de conversa. O corpo parece que tá quieto, desencanou de falar.
Não que eu seja a pessoa da dança ou da expressão corporal, longe disso. Mas meu corpo não para quieto, nem pra mim nem pro mundo. Outro dia eu tava trazendo umas compras pra casa e passei no jardim que tá coberto de folhas por causa do outono. Fui parada pelo cheiro – folha seca tem cheiro, aliás incrível, parece perfume caro. Ficamos ali, eu, as compras e meu nariz. Como o ar tava frio, minha pele entrou na conversa. O sol tava claro, meu olho começou a fechar. Parecia lista de chamada. Braços? Presente, tá chato segurar essas sacolas. Cabelos? Presente, tô dando uma esvoaçadinha de leve na brisa gelada. Orelhas? Presente, farfalhar é uma palavra engraçada, né? Tô ouvindo farfalhar e é um som mesmo farfalhante. Beiço? Presente, o nariz tá começando a escorrer porque tá frio. Mãos? Não posso ajudar, tô segurando as compras. Olhando de fora, era uma pessoa parada, com duas sacolas em cada mão. Por dentro parecia boteco em época de confraternização de fim de ano, maior bafafá.
Voltando à Estevens, ela termina a news dela com o elogio mais surpreendente que eu já recebi.
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Farfalhar é uma palavra engraçada e me faz pensar em farfalle - primeiro o macarrão e depois na tradução. Sabe-se lá porquê chamamos de macarrão gravata e não borboletas - bem mais legal. Mas voltado, borboletas me fazem pensar em farfalhar, apesar de baterem as asas silenciosas. Tipo, borboletas farfalham ao vento. Sei lá, tô pensando alto. E, aparentemente, no sentido figurado, farfalhar, é falar muito e rapidamente. Ou seja, farfalhei aqui! Foi mal ;)
A escrita tem uns poderes inacreditáveis, mas, certamente, tecer relações entre pessoas é o maior deles. Que bonito ser citada por aqui. E, sabe, fiquei pensando: eu também queria ser linho, mas acho que tou mais pra morim (que não conhecia e que acabei descobrindo por aqui).