13 de fevereiro, Smith College. Participei da leitura de uma peça. Nunca interagi com teatro, nunca atuei (tirando a peça na escola de inglês), fui a poucas peças. Mas tenho um princípio que levo a sério: digo sim pra convites pra lugares que nunca visitei.
4 semanas antes, quintal. Assim que um dia tava brincando de trenó com meus filhos e escrevi: — Claro! em resposta a uma mensagem de um dramaturgo brasileiro que me convidava pra ler um papel na peça dele. Deixei bem clara minha inexperiência.
Ele explicou que tudo bem, que pra ele o importante era que o papel fosse lido por uma mulher brasileira, porque estava escrito em português e em inglês-brasileiro.
A personagem: Mother, mãe de um jovem desaparecido na ditadura militar brasileira que está tentando saber do filho (spoiler: morto). Mother morou em Connecticut. Temos três coisas em comum (brasileiras, filho e morar na New England).
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Janeiro, 2022. Eataly Flatiron (NY). Tava tomando um café com amigos. Não sei qual era a conversa, mas chegou em como meu filho mais velho tava se adaptando aqui, eu fui falar que:
- Perguntei pra ele qual foi a coisa mais legal que aconteceu em 2021. Ele disse: “foi quando eu percebi que tava lendo em inglês dentro da minha cabeça”.
E não consegui terminar a frase, engasguei de emoção. O que eu pedi pro meu filho fazer (entrar em outra escola, em outro sistema escolar, em outro idioma, em outro país…) não foi pouco e ele só respondeu com graça e beleza.
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De volta ao presente. New England. Nos ensaios da leitura, fui vendo que tinha umas memórias minhas que eu podia emprestar pra Mother. A cena é um diálogo longo entre Mother e American. Lembrei de um amigo daqui, que um dia falou assim: “Ah, não vem com essa mania europeia de dar abraço pra dar oi” pra deixar Mother desconfortável, meio perdida, na interação com American. Na conversa, ela conta dos livros que o filho leu quando morou nos Estados Unidos – e eu quase nunca conseguia ler essa parte sem engasgar, porque lembrava do meu filho lendo inglês dentro da cabeça.
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Tinha uma parte comprida da conversa em que Mother falava do pão de queijo que faz e que o filho gostava de comer. Não vou nem começar a lista de memórias que contêm as tags #paodequeijo #filhos porque é sem fim. Engasguei todas as vezes.
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A cena termina com Mother perguntando do filho diretamente pra American, que sabe (viu ele morto), mas é bundão e não fala. Mother tenta explicar o que é viver sem saber. Não consigo imaginar o que seria de mim não saber onde está um dos meus filhos.
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Do “claro!” à noite da leitura foram quatro semanas. Eu emprestei tanta coisa pra Mother que, vou dizer a verdade, me senti meio vazia. Fiquei curiosa de saber como os atores fazem pra viver. Aline, você é atriz. Como você vive?
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13 de fevereiro, Smith College. Na noite da leitura, tava contando pros meus colegas (todos eles muito gentis e acolhedores com meu amadorismo) que topei essa tour com a curiosidade de viver algo que nunca vivi e que a experiência tava me fazendo refletir sobre várias coisas: como a voz muda o texto, como o texto muda quando lido várias vezes, quem sou eu quem é Mother, o que eu peguei em mim pra preencher o espaço que ela ocupa na história, no palco, no som. O ator que faz Brazilian (ou seja, meu filho, filho dela) falou:
- Total. Acho incrível vender essa ilusão.
Eu respondi um pouco sem pensar:
- Ilusão? É tudo verdade.
Ele deu uma risada (- Ai, mãe, vai…).
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Baixo Pinheiros (quando ainda não tinha esse nome). Em 2008 mais ou menos eu tive uma professora de francês totalmente genial, a Gilliane. Um dia, a gente tava conversando sobre parar de fumar, ela me falou:
- Quando eu parei de fumar, foi mais fácil do que eu pensava. Aí eu percebi que a vida tinha uma monte de porta. Você entra e sai, entra e sai. Voltei, parei. Parei nunca mais voltei. Entrava na porta pra Gilliane que fuma, depois entrava na porta da Gilliane que não fuma.
Minha vida nunca mais foi a mesma. Comecei a ver porta em tudo. Vem daí esse princípio de aceitar convites. Tem a ver com entender que essas portas existem e que sempre tem uma porta pra voltar.
Tô falando das portas porque meus colegas vieram falar comigo depois do fim: agora você larga tudo para virar atriz, né? Dei um abraço bem brasileiro em cada um deles e fui em direção à porta de saída, aliviada de dar tchau pra Mother e voltar a ser só eu mesmo.
Antes de dar tchau pra Mother, uma última memória.
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Semana do Natal, 2015. Carrefour do Limão (SP). Tava lotado, aquele calor, eu tava saindo de um plantão (a sede do Estadão é na frente do Carrefas). Tinha um zilhão de famílias fazendo compras de última hora. Um zilhão de crianças gritando:
- Mãe, isso.
- Mãe, aquillo.
- Mãe, aquilo-outro.
Meu filho (na época eu tinha só 1) não tava lá. Eu sabia que ele não tava lá. Mas cada vez que eu ouvia “mãe” o meu corpo virava na direção da voz. Foi assim que descobri que toda mãe tem muitas xarás.
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Affee que delícia te ler, Helô ♡
e eu aqui nem precisei pegar nada emprestado pra engasgar