- Now, I will diffuse you.
Eu tava na frente do espelho, olhando pra minha cara, quando ela falou isso no meu ouvido.
Minha cabeça pegou o trem expresso para Desconstruindo Harry e o homem-fora-de-foco (que genial!), enquanto eu continuei olhando pro espelho e pensando: quando vou ficar borrada? Como vai começar? Vou perder nitidez nos contornos?
Claro que eu tava no salão de beleza e o contorno em questão era o das ondas do meu cabelo sendo moldadas pelo difusor no secador.
Mas assim é essa vida nesse espaço entre dois idiomas: cheia de piadas não-intencionais, traduções literais e confusões mentais.
(Se você não entendeu nada até aqui: secadores de cabelo têm um acessório chamado difusor, que parece um chuveiro. O ar passa por ali e se espalha por diversos furinhos. Quem tem cabelos cacheados ou ondulados, acomoda as madeixas no difusor e seca elas assim, para preservar a curvatura dos fios – se você pegar o secador com a ponta normal, vai alisar o cabelo. Em português do Brasil, se você vai secar o cabelo de alguém usando um difusor, você diz: agora vou secar seu cabelo com o difusor. Mas aqui eles têm essa construção.)
É essa construção, esse jeito de dizer:
- Agora vou difundir você.
É uma promessa? Ameaça? Xaveco? O que você quer comigo?
É difundir no sentido de contar pra todo mundo sobre mim? Ou é difuso no sentido de borrado, pouco claro, sem nitidez? Você vai me divulgar ou me confundir?
Ela só ia secar meu cabelo, mas me deixou flutuando na graça dessa frase.
Sempre paro nesse jeito que eles falam aqui.
I’ll walk you through.
Vou andar você através.
Minha cabeça vai pra dois lados, em um eu virei um tapete de pele de urso e a pessoa agora tá andando em mim. Em outro, tô na cena de Amélie Poulain em que ela pega o cego e vai falando pra ele tudo que ela tá vendo. É o puro I’ll walk you through.
Let me show you é o que alguém diz quando vai mostrar alguma coisa. Mas eu sempre me vejo Simba nas mãos do Rafiki. Deixa eu mostrar você pra todos os animais da Savana, pequeno futuro rei.
E isso acontece algumas vezes por dia, porque são construções bem corriqueiras. Imigrar é um barato. A pessoa tá ali falando a coisa mais trivial e minha cabeça tá produzindo um clipe surreal (e bem anos 1990/2000).
Mas tem um outro lado nisso tudo, mais poético talvez, que é o fato de a graça espreitar nos lugares mais bestas.
Uma vez, numa Flip em 2010, eu tava no banheiro, olhei pra frente e dei de cara com instruções da sauna. Era uma dessas casas de praia pra alugar, com piscina, sauna, gente demais e espaço de menos. As instruções eram assim:
Para ligar, abra a água e feche o dreno
Para desligar, feche a água e abra o dreno.
Eu não tava muito feliz, e essas instruções me consolaram instantaneamente. Lembro de achar a pura poesia, tanto que escrevi aqui, na primeira encadernação desse Caracteres. Em 2010! O tempo voa.
2.875 caracteres com espaço
Texto muito divertido. Comecei a ler de maneira muito despretenciosa e quando vi, estava rindo horrores!
Aproveita essa fase em que você ainda consegue ter distanciamento e criar piadas. Eu moro há 7 anos na França e não consigo mais fazer isso, tô dentro demais, aí preciso tá contando algo pro meu irmão pra ele se ligar na frase e fazer uma piadinha. Você está na fase do espanto, e ela e uma delícia !