Faz dez anos, fui visitar a Belle em Chicago. A gente foi numa loja e, na saída, vimos um display com caixas para óculos. Só a caixa mesmo. A parte de fora era lisa e a parte de dentro tinha uma estampa legal. Custava uns 20 dólares.
Ficamos as duas olhando. E como uma conversa que continua sem ter começado:
- Cara, é isso.
- Né? A vida tá muito estruturada.
- Você tem tempo, energia e dinheiro pra escolher e comprar uma caixa para colocar os óculos – que você já tem e que inclusive vieram em uma caixa.
- Toda vez que pega os óculos você se lembra que comprou a caixa. Ela não veio com ele, não tá dada. Você escolheu.
O tom não era de zoeira. Era de aspiração. A gente queria – e quer – estar nesse lugar. Quer olhar pras nossas coisas e ver que escolheu cada uma delas. E que muitas vezes essa escolha passou pela beleza.
Nos muitos dias em que eu passei lá (Belle, Chico, nunca vou esquecer da paciência de vocês, amigos amados), esse assunto veio e voltou mil vezes.
Existe algo muito mágico em dar atenção a coisas aparentemente desnecessárias, botar uma lente de aumento nos detalhes e transformar os detalhes em escolhas.
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Lembrei dessa história porque vi esse vídeo do Paulo Vieira sobre manteigueira.
Ele diz assim:
- Eu acho manteigueira a coisa mais chique do mundo. A pessoa ter um espaço só pra guardar manteiga. Ela tá com a vida resolvida. Eu acho que manteigueira é um indicador sócio-econômico de riqueza, porque a pessoa se preocupou em ter um espaço pra guardar só a manteiga. Essa pessoa não tem… não tem um filho que dá trabalho.
Na minha cabeça, o Paulo (não conheço ele) entrou na minha conversa com a Belle, lá na loja de Chicago. Como se o tempo dobrasse e ele chegasse no meio do papo pra emendar a caixa de óculos com a manteigueira e apresentar a teoria do indicador sócio-econômico de riqueza.
Eu ia ter que concordar e discordar. Acho manteigueira muito chique também. Mas não acho que é sócio-econômico. A manteigueira é prima da capinha de crochê pro botijão de gás. É capricho, vontade de enfeite, desejo de beleza. Não é dinheiro, é outro tipo de riqueza.
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Tenho manteigueiras, no plural. Uma garrafinha pro azeite com aquele bico de metal, e outra pro óleo de milho, tigelinha de cerâmica pro sal, porta-ovos de cerâmica...
Tenho tempo de sobra? Diria que não. Trabalho, cuido de filhos (no plural), cozinho pra todo mundo e não tenho faxineira – varro, dobro roupa e o escambau. Mas do mesmo jeito que acho tempo pra ler o jornal no domingo ou pra ver seriado depois que as crianças foram dormir, encontro os segundos necessários pra transferir a manteiga do envelope de papel para a manteigueira ou passar o azeite do galão pra garrafinha (inclusive custa menos por ml comprar na embalagem maior).
As manteigueiras eu peguei numa pilha de doação no jardim do vizinho. A garrafinha de azeite eu comprei. A de óleo veio da casa de um amigo que tava de mudança.
A tigelinha do sal foi mais cara – eu tava obcecada com a cerâmica Celadon, uma técnica bem valorizada na cerâmica asiática que inclui aplicar uma camada de argila líquida com bastante ferro na peça antes da queima. O ferro oxida e dá um tom verde-acinzentado que é lindo de morrer.
Tinha acabado de ver a coleção de cerâmica Celadon no museu de Boston. Aquela cor elegante e serena não me saía da cabeça. Então encontrei uma tigelinha comprável na Amazon. Custou 70 reais. Aceito o Paulo me zoar de ryca, foi uma extravagância.
Mas todo dia quando pego sal pra colocar na comida fico feliz – especialmente depois que eu encontrei uma colherinha de bambu (menos de U$ 1) pra ficar ali no pote. Ela mede exatamente 1 colher de sopa. Fica ali sempre à postos para salgar a água do macarrão (outro detalhe que faz toda a diferença na vida. Faça esse favor pra você mesmo e salgue sempre a água do macarrão).
Tenho muitas sortes na vida. Mas muitas mesmo.
Uma delas é ser amiga da Belle. Ela escreve a newsletter mais legal sobre vinhos, Saca essa Rolha. A mais recente é uma pérola, parece que você sentou à mesa com a Belle e ela tá contando uma história. Eu, se fosse você, assinava.
Outra sorte, amigos espirituosos como a Rita, que tá preparando uma newsletter incrível pra quem gosta de livro pra crianças, Bizóia (eu se fosse você assinava também). Quarta nevou aqui, e eu contei pra ela e ela respondeu assim:
Algumas horas depois, caiu a ficha: NEVEMBRO! Muito melhor. Português, seu lindo!
Mais uma sorte: amigos que vão além. Como o Rods, que há 25 anos me convida a dar um passo a mais. Ele leu a minha newsletter sobre omelete, tá trabalhando no assunto e falou assim:
Adoro quando uma coisa bem imediata revela algo mais amplo. Além de estar gostoso comer omeletes melhores, essa história quebrou com um preconceito que eu tinha. Esse lance de ir empurrando pro centro e deixar ele se remontar, se refazer era tudo que eu achava que não podia acontecer. Minha regra era: não toca. E se arrebentava, mesmo que cobrisse com a parte líquida, eu via como o começo do fim. É uma maneira de mudar o jeito de pensar. Já é uma mudança na maneira de ser. É disso que a gente precisa sempre.
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