Contei aqui que fiz um pudim e, no caminho pro pudim, falei de omelete. Parece que sem querer acertei um nervo.
Claro, cada um prepara a omelete como quiser. Mas quem não sabe técnica come omelete ruim a vida inteira sem nem se dar conta.
Sou obcecada por fazer coisas do dia a dia um pouco melhores. Da espuminha de leite no pingado à embalagem de detergente. Então, muitos anos atrás, gastei uns ovos pra melhorar a omelete. Por que omelete? Eu vivia na correria e comia omelete pra caramba. Hoje, se o planejamento furar, tenho mais cartas na manga. Mas na época, era só omelete mesmo. Então fui nela.
Não tenho a ousadia de fazer um tutorial da omelete. Mas posso contar como fiz pra melhorar a minha.
Disclaimer. Muito do que escrevi se baseia neste neste vídeo do Jacques Pépin. Eu já vi este e variações dele umas 200 mil vezes. Daqui pra baixo, o que você vai ver é uma versão mastigada desses 5 minutos de genialidade culinária.
1. Referência calibrada.
O primeiro passo é comer uma puta omelete.
Orras! Além de dizer que não sei fazer omelete você tá insinuando que eu nunca comi uma?
Sim e não.
Ter uma referência clara é sempre meu passo 1. Você pode ter comido omeletes incríveis, mas prestou atenção ao que fazia de cada uma delas uma omelete incrível?
Sim? Ótimo, pode pular esse passo.
Eu lembro bem a primeira vez que comi uma omelete boa. Tinha 18 anos. O Malysse, que é francês, tava fazendo omelete. Eu tava olhando e pensando: cara, isso não parece com nada que vi até hoje. Ele reparou e falou:
- Heleaux, omelette tem que babar.
Quando comi a omelete, babamos.
Até ali, pra mim, omelete era um disco borrachudo de ovo com alguma coisa misturada (ovos não eram o forte da casa).
Se eu estivesse em SP, iria no Komah. Foi ali que o Paulo Shin (que não está mais lá) ensinou muita gente o que é omelete boa. Aqui ele mostra como faz a tal omelete. Se quiser, pode ir direto pra essa técnica. Eu, pessoalmente, acho difícil pular de “nunca pensei a fundo em omelete” para “omelete perfeita”. Eu não consegui. Então vou contar o caminho que fiz.
2. Tá, mas o que é omelete?
O que chamavam de omelete na minha casa era fritata. Quando eu comi a omelete que babava me deu esse estalo. É diferente demais, devia ter outro nome... Pois tem.
A fritata é um disco de ovo com legumes. Pra omelete que eu comia na infância chegar lá era uma questão de ajuste (adicionar creme de leite, diminuir o tempo de cozimento, aprimorar a técnica da virada ou finalizar no forno). Não tava tão longe assim. Mas não é omelete.
Omelete é, na definição de Escoffier: ovos mexidos contidos por um envelope de ovos coagulados. A cara dela é essa:
Mas eu também curto a versão mais rústica. Quando eu faço omelete recheada eu nem penso na clássica francesa. Quero a omelete com essa cara aqui:
Pronto. Agora que a gente sabe onde quer chegar, dá pra começar.
3. Olhe bem pra sua frigideira
Como tá essa guerreira? Ela continua antiaderente ou você tá forçando a barra? Melhorar a omelete é um processo que inclui encarar a verdade. Não sai omelete boa de panela errada. A minha é essa aqui, mas a real é que tanto faz.
O que importa: uma frigideira realmente antiaderente e do tamanho certo.
O que é tamanho certo?
Vamos de McGee.
(Fico citando o McGee como se tudo mundo conhecesse, mas ele não é assim o Paul McCartney. Então vamos lá, Harold McGee é a principal referência de informação confiável, detalhada e baseada em ciência sobre culinária no mundo. A bíblia chama Comida e Cozinha, mas ele tem outros livros. É claro que eu tenho uma história com ele, contei na encadernação anterior deste Caracteres, você pode ler aqui).
Pois diz o McGee. “O volume dos ovos e o diâmetro da panela devem ser calibrados de maneira que os ovos formem uma camada relativamente fina, se não a mistura de ovos leva muito tempo para cozinhar e fica difícil formar a omelete.”
Na prática: para uma omelete de 3 ovos, uma frigideira de 20 centímetros.
Conselho: no começo, se você quiser comer mais do que uma omelete de 3 ovos, faça mais de uma omelete. Depois avance para omeletes maiores (e mude pra frigideira de 25 cm).
Ah, mas você é observador e vai dizer:
- Ué! No vídeo, o Shin faz omelete na frigideira de inox. Além disso, o trecho completo do McGee diz que “qualquer frigideira com a superfície bem curada serve pra fazer omelete”.
É verdade. Quer fazer omelete na frigideira de inox? Boa sorte, beijo, depois me conta.
3. Uma espátula pequena de silicone
No frigir dos ovos, tudo tem a ver com delicadeza. O Gordom Ramsay até deve fazer uma boa omelete, mas não é à toa que a referência é o Pépin. Esse é um processo todo sutil. A camada de fora deve ser fina. E pra você mexer numa camada fina não dá pra chegar de colher de pau. Nada contra colher de pau. Mas não é a hora dela, nem de espátula grande, nem disso aqui:
Na boa. Você já se perguntou se realmente precisa disso na sua cozinha? Eu descobri que pra mim a resposta é não (é claro que tenho espátulas, mas meus olhos têm alergia a esse material).
Compra uma espatulinha delicada, flexível, fina. Ela vai ser sua grande aliada. A minha é esta.
4. Vai leite
Você vai achar a quantidade ideal pra você. Pra começar, escolha uma medida (pra ter a referência e depois ir ajustando). Eu uso uma colher de sopa (15 ml) pra três ovos.
O leite espaça as proteínas do ovo e, na prática, aqui, tem dois resultados:
Você ganha tempo. O leite aumenta o tempo que leva pro ovo coagular. Dá mais chance de reagir antes de a omelete ressecar.
Textura. A gordura do leite deixa tudo mais cremoso.
Mas, de verdade, também dá pra fazer sem leite.
5. Misturar os ovos
Como eu disse, tudo é delicadeza. A ideia não é bater os ovos, mas romper a gema e misturar com a clara. Se bater demais, entra ar na mistura e a omelete fica dura.
Na minha casa, rolava uma piada de que nunca achei graça. Rezava a lenda que meu pai foi bater creme de leite pra fazer chantilly e quando se deu conta o creme tinha virado manteiga. A graça era que ele era um brucutu? Deve ser. Eu achava muito tosco ele não conseguir observar o processo e saber a hora de parar. Pode ser que uma parte do meu encantamento com escrever, desenhar e cozinhar venha daí. Os três têm a ver com observar o processo e saber a hora de parar. Por exemplo: este parágrafo. Já deu.
6. O jeito mais simples
Pra mim, o primeiro avanço significativo da omelete foi aprender a simples técnica de: puxar as bordas pro centro. O resultado é aquela omelete dourada & dobrada.
Então vamos lá: você tem seus três ovos batidos com uma colher de leite. Sua frigi de 20 cms tá quentinha ali no fogo médio. Você derrete manteiga (ou aquece a gordura que preferir), despeja a mistura de ovos e saca sua espátula nova.
Olho nas bordas: ficou opaca, pega a espatulinha e puxa a borda pro centro. O ovo cru vai escorrer e preencher o espaço que você abriu. Vai fazendo isso com a borda toda, quantas vezes precisar, até o ovo parar de escorrer. Parou? Dobra e manda pro prato.
(Pra ela ficar dourada real, a técnica profissa é, depois de dobrar, escorregar um quadradinho de manteiga entre a frigideira e a omelete, pra dar um bronze na superfície. Fica lindo. Mas eu pulo essa parte.)
7. Mas como assim dobra e manda pro prato?
Vem com a espátula no lugar em que o cabo encontra com a frigideira e dobra dali. Aí você chega a frigideira perto do prato, dá uma inclinadinha no prato, pra ele formar um V com a frigi. E, com cuidado, o prato vai voltando pra horizontal e a frigideira vai deitando em cima dele.
Juro que é só assistir esse trecho aqui e imitar. E repetir. Uma hora fica automático.
Parêntese: recheio
Essa é minha técnica favorita pra omeletes recheadas. Quando você puxou a ultima bordinha e o ovo não escorreu, é só colocar o recheio na metade mais distante do cabo. Assim quando você fizer sua dobra, não precisa carregar peso de recheio (lembra, é tudo delicado e a omelete talvez quebre).
Atenção: se você for rechear sua omelete com queijo, não espere ela firmar demais. Você precisa do tempo pro queijo derreter. Pode salpicar o queijo ralado (derrete mais rápido) na superfície inteira, assim derrete mais rápido. E não exagera na quantidade – ou, até tudo derreter, sua omelete estará dura.
Atenção 2: é meio óbvio, mas sempre prepare o recheio antes. Vai usar queijo? Deixa ele já ralado no potinho, igual programa de TV. Vai usar tomate cortado? Mesma coisa. Espinafre, cebola ou cogumelo refogados? Faz o refogado antes e deixa ele prontinho no pote do lado (aliás, escorre bem o líquido se tiver).
8. Próximo passo: outro nível
Daqui pra frente é tudo detalhe. Mas são eles que vão levar à omelete francesa clássica. No vídeo do Pépin, entramos neste trecho aqui.
Os detalhes pra passar de fase na omelete são:
Menos calor. A panela tem que estar quentinha, mas não tão quente. Abaixa o fogo um tiquinho.
Mais manteiga. A manteiga que vai pra frigideira não é mais só pra untar. Ela vai entrar na omelete, vai se misturar com o ovo, que vai ficar ainda mais cremoso. O Shin coloca 25g pra 3 ovos (ou seja, um 1/4 do tablete de 100g). Eu uso menos.
Chacoalha e mexe. Derreteu a manteiga (mas derreteu mesmo? Espera a manteiga derreter), vai a mistura de ovos e você vai começar a fazer dois movimentos: a frigideira chacoalha pra frente e pra trás e a espátula gira. A sensação é essa aqui:
A ideia é fazer um ovo mexido cremoso. Formou? Dá pra ver que em vez de ovo cru agora tem um mingauzinho? Então atenção. Rapidamente, a parte que está em contato com a frigideira vai firmar e formar a casquinha da omelete. É hora de…
Mandar pro prato. A verdade é que essa é a parte mais difícil. E é aqui que você vai descobrir se sua panela tá antiaderente mesmo e se sua espátula é delicada de verdade. Eu só consegui dar esse passo depois de ajustar meu arsenal.
Você pode pular minha tentativa de explicação e assistir mais vídeos:
Rita Lobo aqui.
Paola Carosella aqui.
No vídeo do Pépin, o trecho é este aqui.
Vou tentar explicar: você vai empurrando a omelete pra borda oposta ao cabo. Quando ela estiver ameaçando fugir da panela, puxa a parte que tá querendo fugir pra dentro, fazendo uma voltinha/dobrinha. Aí com a sua espátula você manda a parte que tá mais perto do cabo pra lá, pra ir formando uma canoa perto da borda. Aí faz um vai e vem com panela perigosamente inclinada de maneira que a sua omelete fique toda aninhada ali na borda, parece uma rede de dormir. Faz o V com o prato e transfere essa lindeza.
Pronto! Agora você tem certeza de que não tá comendo omelete ruim.
O Kenji e a saga de dominar uma nova habilidade
O Kenji Lopez-Alt, que cito na legenda de uma das fotos de omelete, é um nerd da cozinha, ou, de maneira mais precisa: uma referência de informação culinária baseada em técnica e ciência. Tipo um McGee II.
Esses tempos, ele começou a aprender a fazer latte art. Tem uns posts no Instagram dele. Já perdi as contas de quantos lattes ele fez.
A ideia de dominar uma nova habilidade é fascinante. Especialmente se ela inclui um novo gesto – como é o caso da latte art e da omelete.
Aprender um gesto é difícil pra caramba.
Pra desenhar. Tocar um instrumento. Fazer um truque de mágica. Bordar. Explorar um novo esporte.
É empolgante e desafiador, exige repetição e persistência. E em troca entrega a satisfação de conquistar pequenos avanços, perceber melhoras.
Fico achando que esse é o antídoto pras dores do presente. Quando comecei a perceber que tava pirando por aqui, voltei a desenhar (voltei pra terapia tb, mas isso é outro assunto). A cada dia desenho um passarinho. A pose, o gesto, a cor, o traço – escolher, treinar e repetir cada uma dessas coisas. No processo vou lembrando de tudo que existe de concreto e palpável, ajuda a combater essa sensação estranha que surge quando a vida parece abstrata demais.
E tudo isso numa simples omelete.
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McGee não é o Paullo, ele é o Jorge
Foram tantos sorrisos lendo esse texto em uma tarde de quarta-feira que só posso te dizer: muito obrigada ❤️ (e vou aferir o diâmetro da minha frigideira daqui a pouco)